Tô só observando

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terça-feira, 18 de março de 2014

Dona Benedita

- “Virgem Cruz Maria José!”, disse Dona Benedita ao ver o cachorro morto ao lado do ponto de ônibus.

Ela já tinha visto bicho morto, já tinha ouvido o porco chorar quando seu pai enfiava a faca por debaixo da pata dianteira. Mas aquilo...  daquele jeito... O quê fizeram com aquele cachorro... Isso, ela nunca tinha visto. Parecia que tinha sido atropelado, pela língua de fora e o sangue na cabeça, mas o olhar dele ainda estava vivo e queria contar para a Dona Benedita o quê tinha acontecido.

Mas por que logo ela, meu Deus! Logo ela! Temente a Deus, ia chegar tarde no culto. Será que era o diabo testando sua força de vontade?

Fechou os olhos, fez o sinal da cruz, mas o cachorro chamou. Ela ouviu. Na cabeça. Será que estava louca? Virou-se rapidamente e disse baixinho:

- “O que você quer? Sai de mim, bicho ruim!”

- “É tudo que vocês sabem dizer, sai, sai, sai, bicho estranho vocês homens” Isso ele não disse, mas falou, na mente dela.

- “Mas eu não quero ouvir mais, viu? Chega! Vou embora”.

- “Não vai não, você não quer saber o que houve com o Justino?” falou o atrevido cão.
Dona Benedita, de morena jacarandá, tornou-se lívida como uma cerejeira. “E lá eu quero saber o que houve com o Justino! Morreu de tanto beber!”.

Seus ombros tentaram proteger a dor, fechando o peito, como quem esconde um passarinho. Ele sorriu, maroto, por ter acertado o coração tão doído dela. “Daqui, eu posso ver tudo que vocês homens fizeram. Tudo. Daqui, eu vejo a chuva, a seca, os roubos, os ônibus, carros, bebês, velhos, trabalhadores e bêbados... Posso ver tudo. Todos os podres, de todos. Sou invencível”.

- “Essa é a ilusão dos mortos”, comentou D Benedita, já acostumada com aquele cachorro pedante falante. “O quê aconteceu com o Justino?”

-“Sabia que você ia perguntar... Vocês não aguentam a verdade e inventam uma. Ele foi embora com a Esmeralda, moça mais nova, boba, que trabalhava só para o sustento dele. Ela era uma leoa nova que só servia a um leão. Você já está velha, cuidando da prole de seus filhos ao invés de cuidar da sua aposentadoria. Quem é que aguenta tamanha dedicação ao outro? Ninguém tem esse coração a não ser que receba parte dessa atenção... Mas, você já não via Justino como homem há muito...”

- “Ele nunca teve uma juba tão lustrosa... Não valia o feijão que comia...”

Dona Benedita tinha o olhar fixo, sem piscar, olhando para dentro. E foi lá dentro que ela lembrou. Lembrou de Esmeralda, shorts curto pela rua, a vender Avon. Recordou dos olhares de Justino. Dos arrotos de cerveja, da camisa entreaberta na barriga... Do cachorro de Esmeralda... Ele era o cachorro de Esmeralda! O que sempre latia para ela! Ele era mesmo o demônio!

O cão já não se movia com o sangue escorrendo entre os caninos, como um vampiro que já mordera sua presa. Dona Benedita deu o último golpe na cabeça dele, para que realmente não falasse com mais ninguém. Ninguém precisava saber.


Olho marejado, mas sem brilho, como de um bicho empalhado, foi assim que ela foi encontrada mais tarde pela filha: sentada no ponto de ônibus, com o pau na mão, cachorro morto ao lado e sabedora de seu destino.

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