Dona Benedita
- “Virgem
Cruz Maria José!”, disse Dona Benedita ao ver o cachorro morto ao lado do ponto
de ônibus.
Ela já tinha
visto bicho morto, já tinha ouvido o porco chorar quando seu pai enfiava a faca
por debaixo da pata dianteira. Mas aquilo...
daquele jeito... O quê fizeram com aquele cachorro... Isso, ela nunca
tinha visto. Parecia que tinha sido atropelado, pela língua de fora e o sangue
na cabeça, mas o olhar dele ainda estava vivo e queria contar para a Dona
Benedita o quê tinha acontecido.
Mas por que
logo ela, meu Deus! Logo ela! Temente a Deus, ia chegar tarde no culto. Será
que era o diabo testando sua força de vontade?
Fechou os
olhos, fez o sinal da cruz, mas o cachorro chamou. Ela ouviu. Na cabeça. Será
que estava louca? Virou-se rapidamente e disse baixinho:
- “O que
você quer? Sai de mim, bicho ruim!”
- “É tudo
que vocês sabem dizer, sai, sai, sai, bicho estranho vocês homens” Isso ele não
disse, mas falou, na mente dela.
- “Mas eu
não quero ouvir mais, viu? Chega! Vou embora”.
- “Não vai
não, você não quer saber o que houve com o Justino?” falou o atrevido cão.
Dona
Benedita, de morena jacarandá, tornou-se lívida como uma cerejeira. “E lá eu
quero saber o que houve com o Justino! Morreu de tanto beber!”.
Seus ombros
tentaram proteger a dor, fechando o peito, como quem esconde um passarinho. Ele
sorriu, maroto, por ter acertado o coração tão doído dela. “Daqui, eu posso ver
tudo que vocês homens fizeram. Tudo. Daqui, eu vejo a chuva, a seca, os roubos,
os ônibus, carros, bebês, velhos, trabalhadores e bêbados... Posso ver tudo.
Todos os podres, de todos. Sou invencível”.
- “Essa é a
ilusão dos mortos”, comentou D Benedita, já acostumada com aquele cachorro pedante
falante. “O quê aconteceu com o Justino?”
-“Sabia que você
ia perguntar... Vocês não aguentam a verdade e inventam uma. Ele foi embora com
a Esmeralda, moça mais nova, boba, que trabalhava só para o sustento dele. Ela
era uma leoa nova que só servia a um leão. Você já está velha, cuidando da
prole de seus filhos ao invés de cuidar da sua aposentadoria. Quem é que
aguenta tamanha dedicação ao outro? Ninguém tem esse coração a não ser que
receba parte dessa atenção... Mas, você já não via Justino como homem há
muito...”
- “Ele nunca
teve uma juba tão lustrosa... Não valia o feijão que comia...”
Dona
Benedita tinha o olhar fixo, sem piscar, olhando para dentro. E foi lá dentro
que ela lembrou. Lembrou de Esmeralda, shorts curto pela rua, a vender Avon.
Recordou dos olhares de Justino. Dos arrotos de cerveja, da camisa entreaberta
na barriga... Do cachorro de Esmeralda... Ele era o cachorro de Esmeralda! O
que sempre latia para ela! Ele era mesmo o demônio!
O cão já não
se movia com o sangue escorrendo entre os caninos, como um vampiro que já mordera
sua presa. Dona Benedita deu o último golpe na cabeça dele, para que realmente
não falasse com mais ninguém. Ninguém precisava saber.
Olho marejado,
mas sem brilho, como de um bicho empalhado, foi assim que ela foi encontrada
mais tarde pela filha: sentada no ponto de ônibus, com o pau na mão, cachorro
morto ao lado e sabedora de seu destino.
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