Tô só observando

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terça-feira, 1 de abril de 2014

Cheiro Velho

Ela queria que tivesse sido diferente, mas já não havia tempo, já não havia graça, só havia medo. Medo de não existir, que era, no fundo, o que ela queria. Deixar de existir. A vida parecia tão dura aquela hora. Viu o caixão descer e teve um ataque de riso, daqueles que a gente só dá quando está no circo e o palhaço nos dá um susto.

Foi assim que ela riu, porque lembrou de uma conversa boba que tivera com Ernesto quando ainda namoravam. Você não pode chorar quando meu caixão estiver descendo, estarei esperando por você lá do outro lado, com os braços abertos, como para abraçar uma criança que vem correndo. Ela achou aquilo tão besta, ficou chocada com o comentário fora de hora. Bateu no ombro dele. Que conversa besta. Sou mais velho que você, é a ordem.

A ordem deveria ser morrermos juntos, estar esclerosada, não sentir a dor da perda, não ver você sofrer. Essa era a ordem sargento. Você não obedeceu ao coronel. Quando mesmo que eles deram essas insígnias um ao outro? Ah, foi em Natal, nas dunas. Ele queria beber mais e ela não deixou.

A Mariana está nervosa, pega um copo de água para ela. Não, só quero lembrar, me deixem assim, de olho fechado, sentindo o cheiro do meu velho, do travesseiro dele, sempre mais baixo que o meu. Senta, senta. Não, Não quero sentar, me deixem em pé, quero respirar, quero me despedir para poder dizer oi de novo.

Ernesto e Mariana tiveram dois filhos homens. Era o mais novo quem estava ao seu lado esquerdo. Ela sentia que a sua pele parecia papel manteiga encostada na dele. Pele áspera a minha, velho tem que se hidratar. Mas nessa hora, não sei se pelo Sol, pela emoção, pelo cheiro de terra ou pela falta do cheiro de Ernesto, ela teve um pequeno desmaio.

Sonhou que corria menina para os braços de Ernesto. Eles estavam novos. Abraçou tão forte o pescoço daquele homem que foi seu companheiro por mais de 40 anos porque ela sabia que era um sonho e que ela podia acordar a qualquer momento. Ele a rodou  no ar, como quem roda girassóis, agarrou forte a menina e sussurrou, como tantas vezes tinha feito. Te sinto tanto. Te espero. Sim, sim, sim!


Ela chorou e acordou com o mais velho segurando-a nos braços. Sorriu, ainda tinha nos braços o cheiro de Ernesto.

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